O número de preconceitos para com a depressão é incrível. Vai do “a pessoa só está triste”, num extremo, ao “a pessoa ‘tem’ depressão” como teria uma espécie de corpo estranho alojado na vida, por pouco ou muito tempo, de outro.
Esses dois extremos se auto-reforçam, tanto na crença popular quanto nas vivências individuais da depressão, pois eles esvaziam o conteúdo e as ações sobre a depressão: de um lado, ela não é nada, e de outro, é tudo. De um lado, o deprimido apenas “se desculpa”, como se estivesse se eximindo dos deveres e das responsabilidades da vida; de outro, atribui-se à depressão uma culpa exterior, como se fosse um corpo estranho, um “espinho” que veio de fora e sobre o qual pouco há o que fazer.
Mas a depressão não tem nada a ver com culpa. E ela não tem a ver nem com escolhas interiores (como se alguém fugisse das responsabilidades), nem com o abandono delas (como se alguém relegasse a “culpa” da depressão a uma causa exterior).
A depressão não diz respeito nem ao indivíduo e nem ao mundo, mas precisamente à relação entre os dois. Nesse sentido, os psicólogos behavioristas sempre se divertiram ao demonstrar como um “estado depressivo” poderia ser reproduzido em laboratório e com animais, naquilo que eles chamam de “desamparo aprendido”: contingências de controle excessivamente aversivas sobre os organismos resultam numa série de estados emocionais, inclusive as ditas retrações e manifestações de “ansiedade” que caracterizariam os deprimidos.
Mas uma ocasião de controle é, como tal, controladora: ela envolve uma relação entre acontecimentos do mundo e comportamentos do indivíduo. E assim é com aquilo que se chama de depressão: é um nome, uma etiqueta, uma categorização, para uma série de estilos, classes ou modos pelos quais a relação entre o mundo e alguém ocorre (não saio de casa por que o sair de casa outras vezes me resultou em ansiedade e medo; bebo porque, quando bebo, isso auxilia a evitar a ansiedade; deixo meus dedos carcomidos como forma de aliviar algum tipo de tensão; esses exemplos, e tantos outros, não são de ações que brotam de um interior escondido, e sim de relações que podem ser modificadas). E sob essa definição geral e esse nível de generalidade, não importa se estivermos lendo Luto e Melancolia, de Freud, ou se estivermos negando o mentalismo, como os behavioristas: quer interpretemos a depressão como uma espécie de identificação introjetiva a partir da perda do objeto, quer como algo relacionado a controle aversivo, trata-se sempre de modos de relação com o mundo, obtidos em algum (ou vários) momentos da história do indivíduo.
Disso, aquilo que chamamos de depressão envolve certa aprendizagem, não importando se ela ocorreu sob determinados acontecimentos infantis e/ou posteriores. E aprendizagem não significa responsabilidade pessoal ou espécie de vontade debilitada, irresponsável ou o que seja. O deprimido não é irresponsável, e sim alguém que, diante de uma série de situações do mundo, aprendeu a lidar com elas de um modo cuja saída não pôde ser outra senão a ausência de algum proveito.
Nesse sentido, é preciso dar tempo ao tempo e, ao invés de culpar o deprimido - como o faz tantos julgamentos populares ingênuos -, respeitá-lo. Afinal, ninguém tem a mesma trajetória de vida e, como reza o dito popular, ninguém deve julgar as outras pessoas, pois desconhece a “cruz” que cada outra carrega (isto é, a história de vida alheia). Isso também diz respeito à atitude do depressivo para consigo próprio: ela não é nem uma atitude de queda diante de algo incontrolável, nem de abandono das próprias possibilidades e “vontade”. Afinal, se tudo é aprendizagem, há também aí um ingrediente de aprendizagem, no qual, não importa o acontecimento sobre o qual vivenciamos, deve-se sempre haver uma interrogação ativa sobre o sentido dele e de nossas relações para com o mundo (questão que, afinal, ultrapassa o deprimido e diz respeito a todos nós e nossos próprios problemas).
E por outro lado, é preciso interrogar sobre os modos pelos quais as relações do depressivo com o mundo ocorrem. Se o que está em questão é a relação com o mundo, jamais é inútil perguntar sobre o que está acontecendo no mundo. Ocasiões como uma pandemia que mata 700 mil pessoas, política de ódio, perda de direitos e desemprego, individualização e atomização das relações, perda da referência da alteridade, crise das relações de confiança, enfim, tudo, deve ser interrogado sobre se é, ou não, um fator concorrente possível para o aumento do número de depressões, suicídios e outros.
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