Castanheiras e Apuís sobem rumo aos céus, não estão sozinhas, vão com Jatobás, Mognos e Sucupiras, seguem majestosas, parecem imensas naves,buscam luz e vastidão.Suas enormes ilhas de copas e galhadas alimentam os rios de chuvas que correm pelos céus.
São gigantes bem acima de nossos pequenos corpos, e com elas carregam miríades de vidas. Cá embaixo a atividade selvagem é ainda maior, mal damos conta de perceber.
Bem abaixo coletamos cajá, ingá de macaco, muruci, açaí em longas touceiras nas várzeas que serpenteiam as terras mais baixas. Aqui e acolá uma multidão de formigueiros e cupins, vizinhos de outras tantas criaturas, pequenas ou grandes, longas ou invisíveis, feitas das tantas partículas que povoam tudo.
Nossos olhos não dão conta de tantos movimentos e vidas nas matas, nossas ferramentas de sentir andam tão ocupadas com mil cacarecos, ruídos intermináveis, e as constantes notificações de mundos tão diferentes como irrelevantes, ao menos para o propósito do viver.
Em meio às moitas de buritis, reunidos em graciosas formações, olho pra cima ainda a tempo de perceber os ninhais de japiins, nos dois lados do caminho.Com penas em amarelo e negro,voam rápido,alertam o bando das nossas presenças, suas casas são uma amostra da riqueza das muitas arquiteturas que os pássaros usam para estabelecer suas moradas; a diversidade é imensa.
Entre fileiras irregulares de Cerejeiras, erguem seus mundos a rainha da floresta, a Samaúma, que em todo seu esplendor, tem no seu entorno outros muitos mundos, formando paisagens que se estendem acima, dos lados e muito longe sob os nossos pés.
Pertinho de nosso grupo, um Apuí imenso mais parece um guardião,ele está perto da Samaúma, centenárias árvores.São criaturas colossais, vestígios das eras de gigantes. Olhando devagar, até o ar é diferente perto delas,uma luz tênue atravessa os vários “pátios” ao redor,formando abóbadas circulares, o som e as cores inspiram a majestade do lugar,sentimos profundamente o peso das memórias destas árvores tão antigas quanto as memórias do mundo que perdemos.
Nosso pequeno grupo faz parada sob os pés Samaúma, e todas as pessoas sentem a dignidade que todo o ambiente carrega. Cada fibra daquela árvore atravessou um longo tempo para estar ali conosco, as pessoas ao redor silenciam,a Samaúma é chamada com razão de rainha da floresta pelos povos amazônicos.
É na sombra daquelas velhas sábias que montamos acampamento, armando nossos bivaques antes que o fim da tarde nos alcance. A escolha do lugar foi determinado não apenas por causa das grandes árvores,mas pelo terreno, favorecendo um bom local para passarmos a noite.
As pessoas do grupo dividem tarefas para a montagem do acampamento;enquanto uns catam gravetos, galhos e pedaços de troncos esparramados por ali, me encarrego de fazer a fogueira num terreno plano, uma clareira natural que favorece uma noite fresca e distante dos riscos de quedas de galhos.
Um acampamento guarda sempre possibilidades de construção de generosidades entre seus membros, esse sentido do comum, onde as habilidades das pessoas formam um corrente quase elétrica de colaboração,no fim,os gestos do pequeno grupo darão forma aos dias de caminhada.
Numa travessia rústica,em plena floresta amazônica,usamos o que temos na mata,nem nos interessa o uso de equipamentos sofisticados.Não é intenção deste ajuntamento de pessoas,mobilizar outras energias para carregar equipamentos ou itens de comodidades com as quais queremos justamente romper. São as coisas mais simples, e as ferramentas naturais, o melhor que temos;sobretudo quando formamos, como as árvores, esse círculo de ajuda incondicional, com a confiança que nos inspira.
Só foi preciso alguns instantes usando uma velha e confiável pederneira para fazer o fogo, alimentando o mesmo com gravetos secos e um pouco de resina recolhido de uma das árvores do terreno;há troncos soltos e galhos secos mais que suficientes para uma noite.Com o facão e a machadinha ficou fácil rachar lenha, arrumamos tudo num canto do acampamento, cobrimos a pilha com palhas para evitar que cobras se aventurassem por ali.
Enquanto cuidava para o fogo formar braseiro para cozinharmos nossa janta,os sentidos aguçados daquela hora me lembraram de olhar a última luz daquele dia,a passarinhada em alvoroço caçando suas moradias no infinito de frestas entre troncos, moitas,galhos e trepadeiras, numa variedade de sons e movimentos sem igual. Esta parte do mundo é bela demais para não ser escutada e sentida.
Dirigia minha atenção para as árvores,deixando o pensamento vadiar pelas grandes copas lá em cima.Aruanãs passam apressadas bem acima de nossas cabeças, enquanto Japiins se empoleiram com estrondoso alarido,barulhentos como eles são.O chamado de um cri-crió (capitão do mato) dá o tom da enorme confusão desta hora do dia, é aquele instante antes que a escuridão da noite,tão rara nas cidades, se instale.
Não muito distante de nosso acampamento deu para escutar o pisado ligeiro de uma cotia, tão veloz como desconfiada. O dia nesta época do ano está mais fresco, a noite até trará um pouco de frio,se duvidar.
Meus amigos fizeram um amarrado para as redes em forma de círculo,favorecido pela disposição das árvores,todos perto uns dos outros.Uma ruma de pessoas, logo ao lado a fogueira.Mais adiante uma plataforma feita de cipós e bambus para as coisas ficarem a uma distância segura de pequenos intrusos noturnos.
Logo os ruídos da vizinhança foram sufocados pelo nosso próprio barulho humano. Entre as impressões do dia,curiosidades e fatos consumiam nossa própria algazarra de fim de tarde. E enquanto o arroz e o feijão iam ao fogo com um ensopado de carne seca de porco que trouxemos,as conversas variavam de cores,como os tons dos caminhos que atravessamos naquele dia. Lá no fundo de minha mente uma pergunta começava a tomar forma,mas a fome depois de um dia inteiro de caminhada não arredou pé,tive que ceder ao estomago.
O jantar ocorreu com um silêncio danado, todos pareciam ter combinado mais comer que conversar, isso é comum em trilhas longas e travessias. E enquanto alguns seguiam na comilança, outros iam fazer outras coisas, e foi e então nessa hora que resolvi ir até a grande árvore.
Entre tantas perguntas possíveis, algumas tinham relevos mais densos, indo desde as dificuldades para atravessar os tumultos do nosso tempo, com extinções em massa e todas as questões postas pela mudança climática.até coisas mais diárias e afetivas.
Eu poderia seguir em zigue-zague por muito tempo, formulando os problemas sobre outros modos de existir, de nos organizarmos enquanto seres vivos, ou coletivos autônomos. Uma infinidade de coisas pipocavam na minha cabeça, mas as árvores, senhoras do tempo,não estavam ali por nossa causa,éramos nós a pedir conselhos a quem chegou tão longe.
Fiquei ali parado, sentado diante daquelas velhas sábias, aquietei-me em busca de uma pergunta que fizesse sentido por estar justamente ali.
Num silêncio auto imposto, olhei pelos lados para ver se alguém estava por perto,escutando as minhas prosas em voz alta. Uma brisa bateu lá do alto,folhas caíam suavemente,olhei para aquilo tudo e permaneci onde estava, quieto, me pareceu que a resposta vinha pelo vento,tudo estava bem ali.Não existiam segredos para a vida daquelas árvores, suas raízes, a vida em suas copas e troncos, os muitos mundos ao redor, com animais, insetos,aves, uns rastejando,formas microscópicas, invisíveis.
De algum modo a velha Samaúma estava dizendo muita coisa, o que eu escutava era sobre os muitos jeitos de existir que a natureza nos mostra;nós nos apartamos disso,nos separamos das árvores do mundo e da vida.
As gotas da manhã, os frutos, como crescem árvores ou animais, o grilo ou o sabiá, a arara colorida e os cupins em suas cavernas e labirintos, raízes imensas debaixo do chão,tantas formas de existir.
Prestem atenção nos ciclos dessas tantas formas de vida,observem como todas as criaturas se comportam,cheirar e tocar tudo isso,escutar e deixar a escuridão da noite tomar conta de seu acampamento,por um punhado de barro nas mãos e adormecer sob as raízes da Samaúma,sem medo algum
Acorde para outros modos de existir e habitar este mundo.
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