AC: violência, sexo implícito
Fazia dezesseis anos que eu não o via.
A primeira vez que a luz de seu rosto canino de traços fortes e pele bronzeada tocou meus olhos foi no dia da mudança. Eu tinha dez anos e achava tudo aquilo maravilhoso, a vizinhança barulhenta, os cachorros e as pessoas apontando para mim e minha irmã, dizendo que o número 53 havia sido ocupado. Fazia alguns dias, longos, desde que saímos de Salvador depois da notícia de que nosso pai morrera em Goiás. A única família que nos restara, uma tia materna, mandou-nos para São Paulo, tentar algo melhor, dar educação e comida para mim – “o moleque sacana que vivia para roubar doce na janela dos outros” – e um marido para minha irmã. Não sei até que ponto a velha se decepcionaria ao saber que pouco disso de concretizou, especialmente quanto à parte do casamento e da educação. Francisca nunca se casou, nenhum homem parecia à sua altura, digno de ver diariamente aquele sorriso em seu rosto negro ou tocar os cabelos de que ela tanto cuidava. Ela não precisava de ninguém, nem mesmo de mim e eu fazia o possível para que ela notasse que também não necessitava cuidar de mim. Eu dava um jeito. Eu sempre dava um jeito.
Enquanto todas as tralhas entravam na pequena casa de número 53, eu vi o rosto dele. Estava do outro lado da rua, encostado em uma mureta sem tintura, esburacada, com um vira-lata apoiado nas duas patas ao seu lado. Quando me viu, um sorriso apareceu em seu rosto magrelo de criança, dentes amarelos e lábios pálidos repuxados numa expressão que qualquer um julgaria de uma maneira diferente, mas foi o gesto único que bastou para que Danilo se tornasse meu amigo.
Não foi naquele dia, porém, que dirigi a primeira palavra a ele. Estava exausto, precisava montar meu quarto, comer alguma coisa e ajudar Cisca a limpar a casa. O trabalho levou até a madrugada e, naquela noite, na primeira noite em São Paulo, eu não adormeci. Minha ansiedade devorava o cansaço, cada pequena célula de meu corpo queria me fazer levantar, sair pelas ruas e conhecer meu novo buraco, cada poste de iluminação, lata de lixo e cada um dos cachorros secos de latido esganiçado que deveria haver por ali. Eu queria a vida que aquele lugar prometia me dar.
E foi o que fiz na quinta-feira.
O bairro era pequeno. Havia mais casas abandonadas do que pessoas ali e as ruas desciam, de terra e pedra, até um pequeno mercado, uma padaria e uma banca de jornal que se resumiam ao centro do lugar. A escola ficava na extremidade oposta, junto de uma igreja e terreno baldio, do qual alguns jovens se apropriaram para fazer de campo de futebol. As turmas da escola eram pequenas, um máximo de quinze alunos cada uma, e um total de sete mulheres formava todo o corpo docente. Era ali que você conhecia todas as crianças do bairro, sabia seus nomes e, pelos nomes, as casas em que moravam. Os Santos do 32, Oliveira do 14… A maior parte dos homens e uma parcela das mulheres trabalhavam na fábrica próxima, e aquele bairro proletário também contava com uma quantidade significativa de italianos, alguns dos quais, inclusive, mal falavam o português, mas eram brasileiros o suficiente para jogar a camisa no chão e correr atrás da bola até o pôr do sol no campo de futebol.
Foi ali que falei com Danilo pela primeira vez.
Já havíamos nos esbarrado muitas vezes durante aqueles quatro meses, em gestos silenciosos de ajuda ou competição, porém eu nunca soube seu nome ou suas palavras até ali. Naquela sexta, eu ficara como goleiro do time adversário dele e Danilo era atacante.
O céu pegava fogo no fim da tarde e o vento arrastava as nuvens pelas labaredas alaranjadas, o sol intenso, vermelho no horizonte que levava à cidade grande. Os grilos orquestravam no matagal ao fundo. A partida seguia empatada, furiosa, com três gols para cada lado. Havia marcas de terra, grama e sangue pelas roupas dos garotos que ainda vestiam as camisas, algumas rasgadas, puxadas até o limite. A bola corria a cada pé, contornando um, outro, e chutada na direção de um terceiro, que a perdia para o outro time. O juiz, um menino pelo menos dois anos mais velho do que todos nós, assobiava com força a cada falta, e mais de duas vezes houve socos ou empurrões, xingamentos gratuitos que às vezes escapavam em um idioma que não era conhecido por todos. Quando o tempo da partida acabou, a manta da noite, escura e quase sem estrelas, já havia abrandado das chamas do sol. Os pênaltis também pouco pareciam ajudar, o placar não mudava e todos estávamos famintos e cansados.
Então foi a vez dele.
O chute de Danilo foi reto e a bola se ergueu velozmente em minha direção. A próxima coisa que senti foi uma dor profunda e aguda no rosto, na região do nariz, e meus joelhos se dobraram na direção do gramado, uma das mãos nuas tentando a qualquer custo conter a quantidade assustadora de sangue que escorria. Ouvi o juiz assobiar outra vez, cancelando o jogo e nove garotos caminharam aos resmungos campo afora, me insultando de todas as maneiras. Nove. Faltava um.
A dor não diminuía, mas eu começara a suportá-la. Quando vi a sombra da pessoa restante se aproximar, o andar característico, lento e preguiçoso, ergui meu corpo e joguei meu punho fechado na direção daquele rosto. Soquei-o uma, duas, três vezes, até que o sangue dele se confundisse com o meu próprio e me afastei. Esperei que me batesse de volta, que me chutasse e combinasse a cor de minha pele e minha origem com todos os xingamentos que conhecia, mas a única coisa que seus lábios ensanguentados fizeram foi sorrir. E então rir, e seu riso era como o latido rouco de um cachorro vira-lata, com sangue nos dentes e olhos de cores desiguais que brilhavam mesmo sob a noite. Disse-me que havia jogado a bola de propósito, que estava esperando por aquilo. Seu sotaque era forte, a língua quase atropelava as palavras.
“Danilo Chiarotti”, ele disse, “Moro no número oito. Me ajuda a levantar, minha mãe cuida disso aí.”
Seu tornozelo também estava inchado e ferido por uma falta durante o jogo. Ele mancou por todo o caminho de volta às casas do bairro e a trilha que nosso sangue deixou na terra foi afogada pelas pedras e a chuva que caiu durante aquela madrugada.
Danilo tinha três irmãos mais velhos: Dario, Domenico e Duilio. Todos começavam com a mesma letra pelo nome de seu pai, Drago, assim como a única filha, Alessa, dois anos mais nova que ele, tomava a inicial da mãe – Adriana. A menina disse que aquele costume começara com o bisavô e seus irmãos, ainda na Itália, e as outras gerações continuaram com ele. Perguntei se faria a mesma coisa, e ela disse que não – não gostava das bonecas, então não queria ter filhos.
Minha amizade com Danilo evoluiu daquela forma, aos socos no ombro, pontapés e boladas nas tardes de sexta-feira. Nos conhecíamos melhor nas vezes em que uma bolinha de papel me acertava a nuca durante a aula, me convidando para cabular o resto do período no ginásio, chutando a bola contra a trave de metal enferrujado ou descer até a padaria, correndo, e roubar brigadeiros do balcão. Eram aventuras. Faríamos onze anos e acreditávamos sermos os reis de todo o maldito mundo, nossos corpos pediam por todo o choque da adrenalina e para concordar com qualquer uma das coisas que um propunha ao outro, a voz não era necessária. Apenas um sorriso, o sorriso de vira-latas que nós dois éramos.
Quando 1964 chegou e as pessoas pareciam ocupadas demais se amontoando no vizinho mais próximo, algum sortudo o suficiente para conseguir comprar uma televisão, nós dois fugíamos para o porão da casa dos Chiarotti. Já fazia quatro anos e poucos meses que eu havia me mudado para São Paulo com minha irmã, o mundo aumentara com o passar dos meses e seu peso também ficara maior. Havia começado a trabalhar e considerava desistir dos estudos, apesar de toda a insistência de Cisca. Cortava e polia madeira durante a tarde, da uma hora até o pôr do sol por pouco dinheiro, mas que ajudava. Estudava pela manhã, obrigando-me a acompanhar o ritmo lento das aulas e a suportar os colegas – número consideravelmente maior com o passar dos anos – que cresciam para serem diabos ou ali chegavam e insistiam que, mesmo que estivéssemos todos jogados no mesmo buraco, com a mesma educação e os mesmos empregos, havia diferença entre nós e aquilo não era tolerável. E era a cor da minha pele que os fazia criar aquela regra, que os fazia ter o suposto direito de me empurrar para onde quisessem. Eu podia me conformar, minha irmã dizia, você sabe que é assim, que não pode mudar, que eu não podia mudar aquilo. Mas eu queria, queria transformar aquilo no mundo que me prometeram.
E me frustrava.
Tinha quinze anos. Meu corpo e minha mente eram um inferno. Toda a agitação, a sede por movimento, barulho, velocidade, não me abandonara desde o final da infância. Tudo me tornava irritado, e eu precisava de algum lugar para descontar aquilo. Então eu comecei a brigar.
Há um momento na vida em que você precisa sair de si próprio. Talvez isso não se aplique a todos, já que não tenho mundo o suficiente para saber, porém o que a experiência me permite concluir é isso. Pode ser cedo, como no meu caso, aos quinze anos, ou mais tarde, aos vinte e cinco, trinta, quarenta ou você pode nem mesmo viver o suficiente para chegar ao limite, quando respirar, comer e tudo o que você faz durante o dia te enlouquece, entedia ou cansa mais do que o normal. Seus pensamentos, assim como as ações, se repetem, e até mesmo o mundo ao ar livre se torna uma prisão, porque sua carne e seus ossos se tornam uma. Sua mente precisa escapar, e cada pessoa tem uma forma única de lidar com isso: viagens, um emprego melhor, móveis novos, roupas novas e quaisquer outras tralhas inúteis, religião, álcool e violência – assim como a mim e meu pai.
É claro que o trabalho ajudava, no início. Eu podia descarregar enquanto serrava a madeira, mas chegou um momento em que até aquilo me enraivecia ainda mais. Resolvi aceitar as provocações no colégio e afundava meu punho nos rostos brancos ou mesmo negros dos que me provocavam, o que me rendeu pelo menos duas suspensões. Pouco tempo depois e as brigas tiveram o ginásio de futebol como lugar, no jogo ou mesmo fora dele, e era maravilhoso sentir a dor esticar meus músculos, quebrar meus ossos e esquentar o sangue. Eu não tinha mais noção de quem eu era e, ainda assim, em nenhum momento conseguia ser mais eu. Danilo sempre estava ali, às vezes sendo quem iniciava a briga para me defender, quem me fazia parar de socar e chutar a outra pessoa antes que a matasse ou ficasse inconsciente. Tinham medo de mim, eu sabia daquilo, mas não ele. Seus dedos agarravam minha camisa e meu braço sem hesitarem para me parar. Era mais do que cuidar de mim. Os anos de convivência mostraram que Danilo não gostava de mim para fazer isso, ele não gostava de nada ou de ninguém. Havíamos deixado de sermos amigos há muito tempo e nosso relacionamento falava com ações, e não palavras, e isso dava a ele uma natureza única e indefinível para nós mesmos. Eu sentia seu ombro ossudo bater em minhas costas quando me puxava, seu rosto sujo a me encarar com os olhos escuros, cada um de uma cor diferente. Olhos de um cão, de um vira-lata.
A definição do que havia entre nós estava na força em que seus dedos me afastavam dali.
“Eu não preciso de você para me defender.”, eu lhe disse um dia, sentado no chão arenoso do terreno da igreja do bairro, enquanto o padre dava o sermão dentro do prédio, a voz ainda audível por fora das paredes. Danilo havia contornado o perímetro para me encontrar, uma sacola parda entre as mãos, escondendo o que o cheiro denunciou ser pinga. Estiquei uma das mãos para pegar a garrafa e beber um gole, colocando-a entre nós dois quando ele se sentou ao meu lado. Batia a areia junto de pequenas pedras das mãos quando respondeu - “Eu sei.”, seus dentes amarelos sorriam, “Mas eu gosto de brigar.”. Então deu os ombros e empurrou o álcool goela abaixo, erguendo o pescoço musculoso, “E às vezes acho que espero você me dar um murro também.”.
Desviei os olhos para seu rosto. Ele ainda sorria. Não estava ébrio, eu o havia ensinado quando parar de beber. Suas íris brilhavam, as pupilas estavam dilatadas, me devorando. Aquela expressão não mudava nunca, desde a primeira vez em que eu o encontrara, desde o pênalti que dera início àquilo tudo. Danilo, aos dezesseis, tinha corpo de homem. Era alto e o trabalho que dividíamos na madeireira lhe dera músculos que mantinha com os sacos de areia no porão de seu pai e que eu fazia nas caras enjoadas dos meninos na escola. Deixava os cabelos num corte militar, quase raspado nos lados, ao passo em que eu, por praticidade, raspava a cabeça desde os treze.
Ainda esperava minha resposta.
“Por que eu te daria um murro?”
Ele cuspiu a lasca de unha que arrancara do dedo - “Não era assim que a gente fazia?”.
Ri – “Você sente falta?”.
Sua resposta não foi direta. Ele fez uma careta - “Você pode usar a areia se quiser, mas a gente sempre tem um ao outro.”.
Franzi a testa. Ele havia se deitado no chão de ponta-cabeça para mim, os pés tocando a parede a igreja. Bebi um último gole da pinga e limpei o rosto com as mãos – “Tudo bem, eu treino e consigo me aliviar. Mas onde eu te bater é vantajoso para você?”
Seu sorriso apenas cresceu.
Era a dor para ele o que a violência era para mim.
As pontas ensanguentadas de seus dedos pressionavam a parede para se impulsionar para trás, e um dos pés, às cegas, me chutava. Soltei-o por um momento para recuperar o ar e o corpo de Danilo se virou, empurrando-me para que minhas costas batessem na parede. Seu punho beijou minha face com violência, uma, duas vezes e a palma da outra mão me puxou pelo pescoço para afastar meu corpo dali, enquanto o joelho se posicionava na direção de meu estômago.
O sangue voou dentre meus lábios.
O chão de concreto tocou minhas mãos e eu arfei, rolando para o lado quando o pé descalço dele se aproximou outra vez. O jato que era uma mistura de sangue e saliva voou de sua boca para o chão, longe de mim, e uma das mãos firmes e brancas, sujas de sangue, areia e poeira, tentaram apertar meu pulso contra o chão enquanto o quadril dele se sentava no meu. Sua mão livre se fechou para me esmurrar outra vez, mas eu o segurei e dei um impulso para que seu corpo caísse ao lado. Ele rolou os dois degraus e caiu de costas, tentando se apoiar sobre um dos braços – o que eu havia torcido mais cedo. Antes que pudesse, porém, corri em sua direção e agarrei sua cabeça. O som oco de seu crânio contra o chão foi ouvido por um número de vezes que a adrenalina não me permitiu contar, até que eu pudesse ouvir sua voz, abafada pela quantidade de sangue que escorria para a boca, me pedir para que parasse.
Eu o soltei.
Joguei-me ao seu lado, respirando fundo, passando os dedos pelo rosto, mesmo que aquilo fosse só para espalhar o sangue que escorria do nariz e dos lábios para o resto da pele. Meu corpo latejava pelos ossos fraturados, os músculos cansados e todos os hematomas que nunca se curavam. E aquilo era maravilhoso. Era mais excitante que todas as partidas incansáveis de futebol, que todas as brigas que eu já tivera na escola, até mesmo aquelas que me renderam suspensões. Mais do que qualquer uma das garotas com quem saíamos. E ele sabia disso.
Já havia quase um ano que combinamos as lutas no porão da casa dos Chiarotti, que tinham uma frequência quase diária e tempo interrompido somente pelas aulas ou o emprego, embora houvéssemos parado de nos importar com os dois. A ideia era que lutássemos até que um de nós ficasse inconsciente ou pedisse que o outro parasse, sem vitórias ou competição de qualquer gênero. Podíamos quebrar um pulso ou nariz do outro, mas não importava, as lutas voltariam após o período designado para a cura. Aquele era nosso jeito de lidar com o estresse e a raiva pura, sem direção a ninguém em particular e, de alguma forma, ao desejo reprimido ao longo dos meses até aquele dia.
Danilo se virou em minha direção. Seus lábios inchados se abriram num sorriso encharcado pelo sangue nos dentes, que também escorria de seu nariz na direção do queixo e pescoço. Seus olhos mal se abriam, inchados e coloridos de uma tonalidade que passava do roxo ao vermelho. Sua íris mais clara era um vago risco horizontal, cortado pela pupila dilatada. Eu não percebi que falava até sua voz chamar meu nome e repetir a pergunta:
“Você já transou com um cara?”
Pisquei.
Eu evitava falar de minhas experiências sexuais com ele, apesar de toda a nossa proximidade. Mais de uma vez, porém, depois de uma luta, quando dividíamos um maço de cigarros vagabundo e a pinga roubada de um dos bares do bairro, Danilo podia narrar longamente tudo o que fazia com a filha mais nova do dono da padaria ou a sobrinha da mulher da farmácia. Se me questionasse e soubesse insistir – coisa que sempre soube – eu contava, hesitante, ainda que quase nem uma das palavras tivesse conexão com a outra. Mesmo que dessa forma, a alteração que ele apresentava era significativa. Seus olhos caninos se tornavam brilhantes de forma maníaca, me engoliam, quase como se aquilo o insultasse, e eu não sabia dizer a razão.
“Não.”, respondi, aos sussurros, e o rosto dele pareceu se aproximar mais.
Mas já havia beijado um, foi o que eu não lhe disse. Fabrício, um dos garotos da rua de baixo. Também não lhe disse que havia gostado, que quando me atrasava era porque passava o tempo com ele. Minha voz havia desaparecido, derretido num gemido rouco quando a mão dele pousou entre minhas coxas.
“Quer transar comigo?”
Não me lembro se cheguei a responder.
Eu tinha fome pelo corpo dele.
O sexo, porém, não substituiu nossas lutas, e nunca aconteciam em algum lugar que não fosse aquele porão, no chão sujo de areia e sangue ou no balcão fixado a uma das paredes. Era sempre depois delas, com o resto da quantidade monstruosa de energia com que chegávamos ali, com o suor e o sangue, de cheiro forte, que nunca realmente nos abandonava.
Eu não amava Danilo e ele tão pouco a mim. Nosso relacionamento era baseado naquilo, no sangue, no suor e no sêmen. Não era amor ou qualquer coisa próxima de compromisso. Havia algo mais, é claro, especialmente do lado dele, mas nem um de nós deu nome àquilo, talvez porque realmente não houvesse. Algumas vezes, durante o sexo, sua voz ofegante me perguntava se “alguma daquelas garotas ou se aquele moleque era melhor do que ele”, mas suas ações independiam de minha resposta. Ele sempre queria mais. Sempre precisava de mais. Eu sentia suas unhas sujas rasgarem minha pele, suas pernas, brancas, marcadas por hematomas e manchas avermelhadas, envolverem a pele negra das minhas, com força, me puxando para cada vez mais próximo dele como se seu corpo pudesse me consumir. Sua boca arfava dentro da minha, mas nossos lábios nunca se uniam. Durante pouco menos de dois anos, nunca houve um beijo entre nós.
Sua boca cuspiu meu sêmen, ligeiramente colorido pelo sangue do ferimento em sua boca, e ele impulsionou o corpo para cima, ficando em pé outra vez. Sorrindo, afundou o rosto em meu pescoço, mordendo a pele, e suas mãos agarraram meu traseiro.
Afastei-o antes que pudesse continuar.
“O que foi?”, me perguntou, erguendo o rosto na direção do meu. Lambi os lábios, mas demorei para começar a falar.
“A gente não pode mais fazer isso.”, sussurrei, a cabeça baixa. Os pés dele recuaram um passo – “Por quê?”, perguntou.
“O Fabrício quer que eu pare.”
O riso dele era de escárnio. Eu sabia, sentia em seus punhos o quanto odiava Fabrício.
“E desde quando você recebe ordens daquilo?”
Ergui os olhos em sua direção. Meu peito estava ansioso de uma forma que nunca havia sentido antes.
“Nós estamos namorando.”
A face de Danilo pareceu desabar. Sua expressão era confusa, atordoada. As sobrancelhas pareciam tremer e os lábios não encontraram palavras adequadas.
Mas ele não disse nada. Sua única ação foi jogar o punho contra meu rosto.
Se ele pudesse nomear aquilo de alguma forma, eu sabia que Danilo usaria “amor”. Era doentio, possessivo, mas era o que ele conseguia sentir. Um dia havia me dito que não sabia o que era que as pessoas chamavam de felicidade ou tristeza, que nunca havia sentido nada além de indiferença. O êxtase monstruoso em que entrava toda vez em que lutava, seja comigo ou com qualquer outra pessoa, era tudo o que tinha. Eu era quem mais lhe dava aquilo, quem mais o fazia sentir e, isso, em sua mente, era amor. E ele não suportava a ideia de me dividir com qualquer outra pessoa.
A partir de então, nossas lutas ficaram mais violentas. Um pulso, alguns dedos e costelas quebradas aconteciam com frequência, além dos dentes que deixávamos juntar para recolocar depois de um intervalo determinado de semanas. Eu me forçava para que tudo terminasse ali, quando um de nós dois pedisse que o outro parasse, mas quase nunca conseguia. Aliás, Danilo nunca pedia para que eu parasse de esmurrá-lo, e também não respeitava quando as palavras vinham de mim. Parava quando se sentia desabar e, com um sorriso, rebolava sobre meu quadril, como se buscasse me lembrar da situação em que me encontrava após aquelas lutas e, mesmo que isso no final me roubasse totalmente a consciência, era o suficiente para me convencer a possuí-lo outra vez. Era inevitável. E, de uma maneira que eu nunca busquei a razão, necessário.
Em contraste a isso, havia meu relacionamento com Fabrício. Era dois anos mais novo do que eu, magrelo e de pele cor de café com leite, manchada por sinais mais escuros. Havia ido morar junto de mim e Francisca após seu pai chutá-lo de casa ao saber de nosso namoro, e cuidava de meus ferimentos quando eu deixava o porão dos Chiarotti. Sabia, pelo meu olhar e cheiro, que eu não havia deixado de transar com Danilo e mesmo que aquilo o machucasse, não comentava. Eu o beijava e dizia que o amava, mesmo que fosse mentira, e íamos dormir. Tudo ficava bem até a noite seguinte.
E foi com esse pensamento que eu despertei quando aquilo aconteceu.
Era janeiro. Havíamos terminado a escola no final do ano anterior e desde então eu evitava Danilo o máximo que conseguia. Voltara de Salvador naquela sexta-feira à noite e fora dormir, e tão pouco vira Fabrício no dia ou no sábado. Francisca ficaria na Bahia pelo resto do mês, então eu teria que arrumar toda a casa sozinho. Estava prestes a desfazer as malas quando ouvi alguém gritar um nome na rua de cima, uma voz feminina que eu conhecia bem. Era Alessa.
Subi a rua, correndo, e cheguei até a farmácia, onde um grupo relativamente grande de pessoas se aglomerava ao redor da porta. Alessa gritava o nome de Danilo, pedia que parasse o que quer que estivesse fazendo, chorando, desesperada, mas aquilo não parecia dar resultado. Entrei no meio das pessoas, empurrando para que me deixassem passar até a última delas, onde meu corpo travou instantaneamente.
Havia sangue na calçada, espirrado na parede e porta da farmácia, encharcando as roupas de quem estava no chão e os punhos e o rosto da outra pessoa, sentada sobre as canelas de forma a prender aquele corpo sob o seu. Alessa já havia dito que os punhos ensanguentados pertenciam a Danilo, que ofegava e suava sob o sol das dez da manhã. Não demorei mais de segundos para reconhecer a cor da camisa, seu comprimento e o corpo sobre a qual estava.
Era Fabrício.
Seu corpo não se movia e o som dos murros de Danilo eram secos, vazios.
Sua pele estava morna, empalidecia mais a cada segundo.
Eu ouvia as sirenes da polícia se aproximarem.
Ele não respirava.
Dois policiais puxavam Danilo dali, segurando-o para que não se debatesse, jogando-o contra a parede do estabelecimento para algemá-lo.
Os olhos escuros do cadáver de Fabrício me encaravam.
Ergui meu rosto na direção de Danilo antes que se afastasse. Estudei sua expressão, a maneira em que respirava, os olhos, os dentes e as manchas de sangue que sujavam a pele branca. Não senti nojo, não tive vontade de vomitar ou de pular na direção dele e esmurrá-lo também, até que perdesse todo resquício de vida, mesmo que o cadáver de meu namorado estivesse entre nós. A única coisa em que consegui pensar enquanto ele se afastava, sendo empurrado até a viatura, foi na primeira vez em que eu o vi, dez anos atrás.
E o tempo pareceu parar para mim.
Vira-lata foi a palavra que me despertou de um devaneio naquela manhã. Era quarta-feira, estava um calor insuportável em São Paulo e por alguma razão havia uma fila no caixa da farmácia. Duas pessoas conversavam na minha frente sobre seus adoráveis cães e quando bufei, soltando o peso sobre uma das pernas, alguém esbarrou em mim. Virei o corpo para trás, na intenção de pedir desculpas, mas o rosto que vi me calou. Fazia dezesseis anos. Eu havia saído daquele bairro, arrumado um emprego melhor no centro da cidade até conseguir dinheiro para o ensino superior. Tornei-me professor, ainda morava junto de Francisca e nunca me casei ou me importei de me relacionar com qualquer pessoa desde aquele dia. Não mais bebia ou fumava, mas às vezes não resistia e me colocava em uma briga de bar. Como um brinde a ele, que nunca mais vi desde que os policiais o arrastaram na direção da cadeia.
Mas seus olhos estavam ali. Um acastanhado, escuro, e outro que era uma mistura de verde com castanho, claro, de pupila grande. Envelhecera, tinha mais músculos e tatuagens nos braços grossos. Não disse nada. Deu-me as costas, jogando uma mochila pelos ombros e caminhou na direção da porta. O sorriso que vi, porém, indicou que me reconhecia. Era o mesmo sorriso, tão desconhecido e cúmplice ao mesmo tempo.
O sorriso de um vira-lata.
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