AC: amisia institucionalizada, estupro implícito.
Amatonormatividade: É a norma social que impõe que todos precisam de um relacionamento romântico-sexual exclusivo, único e central, e que ele seja categoricamente superior a qualquer outro. (Elizabeth Brake)
Ele tinha uma marca na nuca. Todos tinham. Todos a recebiam assim que nasciam, uma queimadura que indicava que a pessoa era predestinada a outra.
Depois do século XXII, a sociedade tinha aceitado que existia o que ia além de heterossexualidade e gêneros binários. As pessoas tinham um par perfeito ao nascerem, resultado baseado em testes de DNA, unido a algoritmos que pareavam a personalidade futura do bebê com a de outra pessoa — os testes de DNA chegaram ao ponto de prever como a criança se desenvolveria — e, portanto, desavenças como as que levavam ao divórcio eram consideradas impossíveis. As pessoas sempre se davam bem com os cônjuges, e todos se aceitavam.
A sociedade tinha, enfim, atingido a plenitude.
Seu nome era Marco. Marco era um homem que tinha uma vagina. Era um homem predestinado a outro homem, um tal de Enzo, e sempre nos jantares de família todos comentavam sobre isso. "Veja o pequeno Marco, que orgulho. Mais diversidade para a família.", eles diziam, "Trans e gay.", "Não vejo a hora de conhecer Enzo."
A diversidade era celebrada em todas as famílias. Exaltada, até. Ele não pensava que aquilo era ruim, uma vez que sabia que nos séculos anteriores pessoas como ele eram perseguidas e mortas por serem como eram. Ele devia ter orgulho. Devia ter orgulho de ser como era, porque a diversidade garantia status.
Mas Marco não era gay.
Marco não gostava de homens.
Marco não gostava de ninguém.
Nas aulas sobre sexualidade na escola ele ouvia termos diferentes, como a palavra "assexual". A assexualidade era tida como doença na sociedade, uma vez que era cientificamente provado que pares predestinados existiam. A ausência de atração sexual e romântica era uma aberração. A ciência sabia tudo sobre as pessoas: sabia como suas personalidades seriam, quais suas cores favoritas seriam, e inclusive em qual família melhor se encaixariam. Uma sociedade não existia sem reprodução sexual nem amor pelo outro, e, portanto, a falta de interesse nessas coisas era uma patologia.
"A ciência chegou ao ponto de adivinhar a sexualidade das pessoas logo no nascimento.", a professora explicava, "Prevendo a distribuição dos hormônios, o gênero do cérebro e as estatísticas dentro da família."
A família de Marco era predominantemente de gays, bissexuais e lésbicas, todos cisgênero. Ele era o primeiro homem trans.
"É claro que nossa predestinação a outra pessoa não tira nosso livre-arbítrio.", a professora continuava a falar, "Podemos ficar com outras pessoas antes de conhecermos nosso parceiro ideal, desde que fiquemos com ele, ela ou éli depois."
Casamentos fora do que era previsto pela ciência eram ilegais.
"Professora,", Marco ergueu a mão, "mas a ciência também sabe dizer se a pessoa é assexual?"
A professora pareceu pensar por um instante. "Infelizmente, não. Da mesma maneira que nossos antepassados não conseguiam prever a sexualidade do bebê, nós não conseguimos prever se a criança será assexual. Isso é porque a assexualidade é uma doença que não é congênita. Ela pode apenas ser detectada tardiamente."
Marco baixou os olhos e mordeu o lábio.
"Nós também não temos muita ideia de como a assexualidade é formada.", a professora continuou, "É provável que seja um problema neurológico ou resquício da evolução, do tipo que permite os transtornos de personalidade se formarem."
"Então a assexualidade é rara?", Marco perguntou.
"Nos dias de hoje, sim.", ela disse, "Temos tratamentos eficazes."
A classe foi liberada depois de algumas discussões a respeito da pergunta de Marco. Ele deixou que todos saíssem, então foi até a professora.
"Eu nunca gostei de ninguém.", ele disse a ela, "Eu tenho quase dezoito anos e nunca gostei de ninguém. Tem alguma coisa de errado comigo?"
Ela sorriu de maneira cordial e colocou uma das mão sobre o ombro dele. "Isso é normal.", disse, "Você só está se guardando para seu par predestinado."
Marco engoliu a saliva, deu um sorriso amarelo e saiu da sala. Não estava se guardando para Enzo. Marco não queria pertencer a Enzo, e não queria que Enzo pertencesse a si.
Ele passou os próximos anos pesquisando a respeito da assexualidade. Sua história, sua exclusão do movimento de justiça social, e enfim seu status como doença. Descobriu também que as gerações de assexuais anteriores às dos seus avós costumavam usar um anel preto no dedo médio da mão direita para anunciar sua sexualidade. Era a razão pela qual nos tempos atuais os anéis pretos eram considerados lixo.
Marco conseguiu comprar um anel a um preço ridículo num site de leilões, sob a premissa de que estava fazendo um trabalho para a escola sobre assexualidade.
Foi quando estava na faculdade que ele enfim conheceu Enzo, no dia de Encontro de Pares, feriado em todo o mundo. Enzo era um garoto louro de olhos escuros, sorridente e sempre com um cigarro de palha entre os lábios. Marco esperou a química instantânea quando ele se aproximou. Esperou as borboletas na barriga, esperou o encantamento, o amor à primeira vista.
Isso não aconteceu.
"Então você é o Marco?", Enzo disse depois de apertar sua mão, um sorriso enorme nos lábios, "Quando nós podemos sair?"
Marco sentiu seu estômago pesar. Não queria sair com ele.
Acabaram marcando para sexta-feira, depois da aula. Marco tinha a semana toda para se preparar, para dizer a Enzo que não gostava dele da forma que a ciência queria, que não queria tê-lo como seu par. Sabia que seria compreendido, uma vez que as desavenças entre pessoas atualmente eram quase inexistentes. Existia respeito.
No dia do encontro, Marco não se esforçou para se vestir bem. Vestiu a túnica unissex cinza que encontrou em seu guarda-roupa, os sapatos brancos e colocou um anel preto que comprou num colar em volta do pescoço. Se não conseguisse falar para Enzo sobre sua sexualidade, o anel falaria. Ele o colocaria no dedo médio na mão direita assim que chegasse ao restaurante.
Foi o primeiro a chegar. Ele colocou o anel no dedo e manteve a mão sob a mesa, escondida. Enzo apareceu pouco mais de meia hora depois. Ele se sentou diante de Marco, os braços esticados sobre a mesa como que para diminuir a distância entre os dois.
"Você é bonito.", Enzo disse, um sorriso sincero no rosto, "Logo que te conheci tive vontade de te beijar."
Marco tentou sorrir. Seu coração batia rápido, estava ansioso. Ele abaixou a cabeça e encarou o anel preto em seu dedo.
Estava com dificuldade para respirar.
"Eu posso te beijar?", Enzo perguntou então, "Eu nunca beijei ninguém, queria que meu primeiro beijo fosse com você."
Marco sentiu que choraria. Respirou fundo.
"Tem... Tem um problema, Enzo.", ele disse, enfim, "E-Eu- Eu não gosto de você. Eu não gosto de homens. Eu sou- Eu sou assexual...", a última palavra saiu baixo.
As sobrancelhas de Enzo se curvaram. "Como assim?", ele perguntou. Marco não sabia dizer qual era a expressão na voz dele. "Você não pode ser assexual, nós somos predestinados."
Marco piscou. Fungou, contendo o choro. "Eu não consigo. Eu não sinto nada por você."
"Você disse que eu era melhor do que você imaginava quando nos conhecemos.", Enzo disse, "Você aceitou se encontrar comigo."
Marco não sabia o que dizer. Se arrependia de ter mentido, se arrependia de ter dito aquilo a ele, se arrependia de ter se aberto daquela forma. O que aconteceu com a aceitação?
"Nós não podemos ser só amigos?", Marco disse então, num tiro cego.
Enzo respirou fundo, passando a mão pelo rosto. Demorou um pouco para que respondesse: "Tudo bem.", disse, parecendo mais tranquilo, "Eu aceito sua amizade."
O alívio fez o corpo de Marco subitamente mais leve, como se flutuasse. Ele sorriu e pediu ao garçom que passava para que trouxesse comida para eles. Ficaram boa parte da noite conversando sobre suas vidas e famílias, o que faziam na faculdade e outras trivialidades. O ar entre eles se tornou menos abafado.
Enzo era uma pessoa legal, Marco pensou. Podia não gostar dele como seu par, mas pensou que ele seria um bom amigo.
Marco foi para a casa sozinho, ao final do jantar. Dormiu tranquilo naquela noite.
Nos próximos dias, ele se encontrava com Enzo sempre antes das aulas. Andavam juntos em direção à sala de aula, sempre conversando e sorrindo.
Acabaram se aproximando mais. Enzo parecia respeitar a decisão de Marco na questão do relacionamento dos dois, e Marco se deixou levar pela amizade entre eles.
Passavam noites inteiras jogando videogames e assistindo seriados em casa, no escuro. Tomavam sorvetes e Enzo ria do quanto Marco sujava o rosto com a massa.
Seriam melhores amigos. Melhores amigos era melhor do que um par de amantes predestinados.
Um dia, Enzo se despediu dele com um beijo no rosto, bem próximo dos lábios. Marco tentou sorrir, mas sentiu sua mão gelar e o corpo tremer. Não conseguiu retribuir o beijo, mesmo sendo um gesto platônico.
Foi para a casa a passos largos. Chovia. Ele chegou ao apartamento pingando água.
Tomou um banho quente e se preparou para deitar. Não conseguiu comer. Assim que puxou as cobertas para subir na cama, ouviu batidas violentas na porta.
Ouviu seu nome ser dito diversas vezes, até que enfim abriu a porta, assustado e confuso. Dois homens de branco se apresentaram. Traziam uma bolsa com um símbolo médico. Foi apenas quando Enzo apareceu, atrás deles, que Marco percebeu o que estava acontecendo e o que viria depois.
"O que acontece quando alguém é assexual?", ele tinha perguntado anos antes para a professora na escola. Ela, com um sorriso, disse: "A pessoa é denunciada e faz o tratamento, que consiste em sexo corretivo, é claro."
A queimadura na nuca de Marco ardeu.
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