Cravos e Rosas

O desgaste de um amor.

AC: bimisia, maldenominação, tentativas de suicídio.


A cafeteria ficava ao lado de um parque onde crianças brincavam. Cantavam o cravo brigou com a rosa, correndo em uma roda ao redor de uma árvore. Eu bebia um café preto enquanto esperava Guilherme. Fazia alguns dias que não nos falávamos – ou melhor, que eu não falava com ele – e eu precisava esclarecer algumas coisas.

O café queimava minha língua. Deixava tudo sem sabor e com textura estranha.

Guilherme chegou depois de meia hora e entrou a passos largos na cafeteria. Veio rápido até a mesa em que eu estava e se sentou diante de mim, tirando a mochila das costas. "Desculpa pela demora.", ele disse.

"Tudo bem.", eu respondi, "Eu sabia que você tinha aula."

Eu peguei o celular ao lado da xícara e olhei a última mensagem que ele me enviou. A irritação subiu pelo meu corpo como uma onda de calor, mas eu me contive. Dei um suspiro, os olhos baixos. Eu queria começar a falar, mas não encontrava palavras.

"Você não respondeu às minhas mensagens.", Guilherme disse, antes mesmo que eu pudesse falar, "Fiquei preocupado, achei que você não queria mais falar comigo."

"Eu sei.", eu falei, "Você disse isso na sua última mensagem."

Ele abriu os lábios para falar alguma coisa, mas não disse nada.

"Eu disse que precisava de espaço.", eu disse então, "Por isso não respondi às suas mensagens."

Ele coçou uma sobrancelha. "Você sabe que-", começou a falar, "Você sabe o que espaço geralmente quer dizer, não sabe?"

"Eu não estou num bom momento.", eu continuei a falar, ignorando as palavras dele, "Eu te disse isso várias vezes.", pausei, terminando o café como se ele fosse o suficiente para me dar coragem, "Você não respeitou isso."

Eu ergui os olhos na direção dele por um momento, mas assim que o olhar dele encontrou o meu, eu desviei.

"Olha–", eu continuei a falar, "Eu sei como as coisas são para você. Eu sei que você sente tudo demais, eu sei que você surta fácil.", meus lábios estavam secos, "Mas você precisa se colocar no meu lugar também. Eu não ando bem, eu não sei o que está acontecendo comigo."

"Você se afastou de todo mundo.", ele disse.

"Eu sei. Mas eu continuei falando com você, não continuei?"

Ele não respondeu.

"Você só precisa entender que eu não estou bem agora.", falei.

Ficamos em silêncio por alguns momentos. Ele dispensou a garçonete quando ela apareceu.

"Você disse que não me ama mais.", ele disse, enfim.

Eu suspirei baixo. "Não, não foi isso que eu falei.", corrigi, "Eu disse que não estava mais apaixonado por você."

Ele abaixou o rosto sem dizer nada.

"Você só precisa entender que eu não estou num bom momento.", eu continuei a falar.

"E quando eu não estou em um bom momento?", ele diz, "Por acaso eu te larguei?"

Eu quis dizer a ele sobre todas as vezes em que me ignorou, sobre todas as vezes que fez pouco da minha presença, sobre todas as vezes em que sumiu. A verdade é que ele passou a maior parte do tempo em que nos conhecemos fazendo pouco de mim. Porque amava mais outras pessoas. E agora, depois que todas elas foram embora, ele se agarrou a mim como a um último refúgio. Eu sou uma rede de segurança para ele.

Mas não falei nada. Continuei a encarar a mesa.

"Pensa bem.", ele disse, "Eu só terminei com você daquela vez porque você disse que não teria tempo pra nós. Eu só me afastei todas aquelas vezes porque você disse que era o melhor."

Arqueei as sobrancelhas. Então a culpa é minha? A irritação voltou a subir por mim.

"Você é manipulativ...", eu disse, sem conseguir terminar a palavra com o gênero certo, "Você distorce tudo o que acontece e sempre faz tudo como se fosse relacionado a você. Nem tudo acontece por sua causa."

A expressão no rosto dele era de perda. Eu sabia que ele queria começar a chorar. Virou o rosto para o lado, mordeu o lábio e fungou.

"Você fala como se eu fosse um peso." , ele disse, "Sempre assim: 'olha, eu não vou poder te dar atenção, então procura outra pessoa porque eu estou muito ocupado'.", eu quis protestar, mas ele não deixou, "É como se você não entendesse que eu não tenho outra pessoa. É como se você não visse que minha família não me apoia em nada do que eu sou, que eu passo horas e horas na frente daquele computador tentando fazer alguma coisa sem conseguir de fato fazer porque, e você sabe disso mais do que eu, aquele acidente mudou muita coisa pra mim."

Ele estava se referindo ao acidente de carro em que esteve faz alguns anos. Teve traumatismo craniano e outros ferimentos graves. Foi um milagre ter sobrevivido, mas não foi sem sequelas: sua memória e atenção foram prejudicadas.

"Você sabe que minha família também não me aceita.", eu disse então, "E que eu também tenho problemas e quase nenhum amigo. Não é só porque eu tenho uma doença diferente que eu não te entendo."

"Ah.", ele passou para o modo de atirar facas para todos os lados agora, eu consegui ver pela entonação de seu ah, "Então sua família também se recusa a te chamar pelo seu nome só porque foi você que escolheu e não eles? Eles se dizem tão presentes, tão preocupados, mas nunca realmente se esforçam para entender o que você passa e já passou? Por acaso seu pai acha que sua vida é uma maravilha e vive pedindo pra você se comparar com as pessoas na Síria, porque aparentemente ser doente mental não é nada comparado a estar numa zona de guerra?"

Eu estava ficando cada vez mais irritado com as palavras dele. Ele sabia que meu pai não falava comigo faz sete anos. Ele sabia que minha família de fato não me aceitava por eu ser bissexual e que nós não tínhamos nenhuma ligação emocional.

"Não é só porque você é trans e borderline que tem todos os problemas do mundo, porra.", eu disse, sem conseguir segurar a irritação, "Eu sei dos seus problemas e você sabe muito bem que eu te aceito. Mas às vezes não dá. Tudo é uma tempestade pra você. Tudo te faz querer morrer."

Ele deu risada, uma risada cínica. "É porque eu sou doente.", e fechou o punho sobre a mesa, "Você diz que me entende, mas não enxerga isso."

"Pára de culpar sua doença pelo seu comportamento.", eu respondi, "Parte disso é ser mimado, você sabe disso."

Ele deu outra risada e se levantou. "Eu preciso voltar pra faculdade, tenho aula às duas."

E foi embora.

Eu fiquei. Assim que ele passou pela porta, eu peguei o celular e comecei a escrever um e-mail para ele. Escrevi tudo o que me veio à cabeça, sobre todas as coisas que eu não conseguia falar em voz alta.

Ele me respondeu com duas frases: "Agora você quer conversar? Vai pro inferno."

Aquela foi a última coisa que eu ouvi dele.

No dia seguinte eu enviei outra mensagem, dizendo que estaria esperando na cafeteria próxima da universidade. Ele não respondeu. Depois enviei outra, pedindo que falasse comigo. Sem resposta. Tentei todos os aplicativos de mensagens e redes sociais qu ele usava, mas não recebi nenhuma resposta dele.

Era sete da noite de uma sexta-feira quando a irmã dele ligou para mim.

"Thiago?", ela disse do outro lado da linha. Tinha uma voz estranha. Não esperou que eu falasse para continuar. "A Carol tá no hospital."

Carol é Guilherme. Carol é como todos o chamam.

Meu coração acelerou. Eu queria falar, mas não consegui expulsar a voz da garganta.

"Ela bateu o carro.", a voz da irmã de Guilherme continuou, "Eu vou visitá-la na terça-feira. Você quer ir?"

Não conseguia pensar. Outro acidente de carro. Outra internação. Eu o veria destruído novamente, com os pulsos amarrados às grades da cama para que não se ferisse.

Eu não queria isso. Eu não aguentaria isso.

"Não sei se consigo.", eu disse para ela, "Eu te ligo quando for."

"Tudo bem.", ela respondeu, e desligou o telefone.

Eu não liguei para ela. Eu não fui visitar Guilherme no hospital.

Tantas semanas depois ela me ligou outra vez, dizendo que "Carol" tinha recebido alta. Disse que a família faria uma festa surpresa para "ela".

Eu não fui.

E mais tantos dias depois eu recebi uma mensagem de Guilherme: "Eu diria que não esperava isso de você, mas estaria enganando a mim mesmo."

Não respondi.

Em alguns dias, eu recebo outra mensagem: "Sabe o que eu percebi? Você também nunca me chamou pelo meu nome."

Ele tinha razão. E perceber isso foi como levar um soco no estômago.

"Você nunca me aceitou.", a mensagem continuava, "Sempre fui uma mulher para você."

Minhas mãos tremiam enquanto eu lia a mensagem.

"Você não é diferente deles.", ela terminava.

Não respondi naquele dia. Quando tomei coragem, com argumentos sólidos e pedidos de desculpas, Guilherme tinha desaparecido do meu círculo social. Não mais o via na faculdade, ele não atendia às minhas ligações e tinha me bloqueado em todos os aplicativos de mensagens e redes sociais.

Depois de talvez três semanas, eu enviei um e-mail para ele. "Foi de propósito o acidente de carro, não foi?" – era o que ele dizia. A resposta veio algumas horas depois, uma única palavra: "Sim."

Aquela também foi a primeira palavra que eu ouvi dele.

"Oi, posso me sentar aqui?"

Num sorriso, ele disse: "Sim."

E disse "sim" quando eu perguntei se podia me emprestar os livros que eu não pude comprar.

E disse "sim" quando eu lhe pedi em namoro com uma rosa vermelha.

E disse "sim" quando eu perguntei se ainda sofria por conta das outras pessoas que tinham ido embora. E "sim", também tinha medo de eu ir embora.

E "sim", o primeiro acidente de carro tinha sido de propósito. E "sim", ele queria morrer o tempo inteiro. E "sim", eu era a única pessoa em quem ele confiava.

Era claustrofóbico.

Era insustentável.

"Você acha que a gente pode voltar a ser amigos?", ele me enviou alguns meses depois.

"Não.", foi o que eu respondi.

Dois dias depois, recebi um buquê de cravos roxos e amarelos no nome dele.